Minha opinião: Esse livro tem um jeitão que me lembrou a forma de escrita do Saramago, não por causa do conteúdo mas pelo jeito do texto corrido... Já a história... ela narra a vida, desde a infância da protagonista, no começo fiquei um pouca confusa, mas consegui resolver e me entender com o texto, as dúvidas femininas e o sofrimento humando aparecem muitas vezes de forma poética e muito metaforica... Algo diferente mas interessante de se ler. Uma nova sensação.
Resumo: História intimista que identifica a infância, o cotidiano e as crises de boa parte das mulheres através da trajetória da personagem central.
Trecho do livro:
Primeira parteA MARIPOSA (Narrativa fantástica)
Tema: paixão
Fundo musical: Bolero, de Ravel
Flores: quaresma e maracujá
Cores: roxo, solferino, vermelho
...j´assis la Beauté sur mes genoux. – Et je l´ai trouvée amère.
Rimbaud
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadaver adiado que procria?
Fernando Pessoa
Várias esquinas antes, a mulher puxando o carrinho trouxe a certeza das barracas. Lá estariam os legumes arrumados: o verde compacto e liso dos repolhos, o crespo da chicória, o vermelho dos tomates. Mais adiante, o cheiro veludoso dos pêssegos. O odor escorregadio e escuro à volta das barracas de peixe penetraria mais fundo, fascínio mesclado de repulsa diante do avental sujo dos homens, a água sanguinolenta junto com as escamas e cascas de camarão. Os flancos de prata, o corpo mole das lulas, o encouraçado das lagostas. Além, a morrinha quente das galinhas, camada isolante, acolchoado de penas. E o sol.
Cruzaram com outra mulher. Como esses galhos boiando, prevenindo os marinheiros da proximidade da terra. A dor mantinha-se ainda mansa, encasulada em seda; mas sabia que viria. E então, repentina como um grito, a rua.
Agora eram muitas mulheres, foi preciso diminuir a marcha do automóvel. Lá fora o sol era feliz. Os ruídos e cheiros chegavam em ondas, amortecidos, os vidros fechados. Dentro do carro, numa bolha, o ar da clínica, atmosfera rarefeita de redoma, branco e éter, onde estivera confinada por tantos meses, retirada de tudo, protegida mesmo do tempo. Bela Adormecida encantada, preservada em cristal. Mas na hora em que abrisse a porta, o estalo da maçaneta deixaria vazar para dentro esse outro ar: da rua, da feira, do agora. Sorriu desmaiado o ensaio de um sorriso. Angústia. Logo num dia de feira. Quase a seu lado, uma mulher discutia com o feirante o preço da couve-flor. As mulheres são tão fortes, nenhuma tem medo de viver. Viu ao longe o portão da casa. Luiz Fernando sentado no muro, o cabelo molhado, penteadíssimo como num retrato antigo, espiava os carros que chegavam. Viu quando ele reconheceu o Ford e correu pela passagem lateral gritando. Enquanto Fernando manobrava, xingando o moleque que tirou um fino do pára-lama com o carrinho de rolimã, vinha vindo a babá com o pequeno pela mão. O mais velho aproximou-se com o ramo de flores.
– Então chegamos? – Fernando dava-lhe um tapinha na mão e sorria. Sorriu também, trêmula por dentro. O medo crescia, forçou a maçaneta. Pela fresta, o carro começou a fazer água. A bolha encheu-se rápida do fluido que a cercava, cheiro de fruta e peixe, voz dos feirantes, cacarejo de galinha. Segunda-feira, primeiro dia da semana, dia de feira, será que a empregada vai faltar? E o medo encontrou o gancho onde se prender. Ninguém para cuidar da casa e das crianças, desamparo. Quando pôs o pé no chão, a nave balão tocava o fundo. O beijo nos filhos. (– Fala com a mamãe, Carlinhos... Dona Ana, ele sempre beijava o retrato da senhora), abraço apertado, boas-vindas. Um pouco fraca, magra e nua no vestido largo, o sol no rosto. O primeiro passo, cuidado e expectativa mal disfarçados nos rostos, astronauta pisando a Lua. Mas era mesmo tão remoto esse mundo? Ou seria o outro? Ouviu longe a bandinha da escola, as crianças cantando “Salve lindo pendão da esperança, salve símbolo augusto da paz”, dia de festa, a chegada da Inspetora. Desamparo conhecido. Frágil, sim, mas regresso. Convalescente.
Entrou em casa ao som da bandinha, pisando numa passadeira vermelha, sob uma chuva de pétalas.
Então chegava silenciosa, pousava no peitoril as morenas asas frias. Toda noite, durante meses. Levantava-me feliz, ajoelhava junto à janela. E por um momento alvorecia. Estendia a mão, cuidado de não machucar. E ficava muito tempo alisando o corpo comprido no sentido do pêlo. Era assim penugenta e lisa. Noturna. Cor de cinza de lareira. Às vezes pensava com aflição que, se apertasse os dedos, sairia de dentro aquela gosma verde de lagarta esmagada. Fechava os olhos.
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